Coluna de Reinaldo Azevedo na Folha de São Paulo, 26/02/2020

 Nos 100 anos da Folha, saúdo a coragem e reivindico mais apartidarismo


Aplaudo o rigor profissional e técnico do jornal; cobro mais apartidarismo diante do Partido da Polícia



25.fev.2021 às 23h15


Jair Bolsonaro tem uma fila imaginária de candidatos ao pelotão de fuzilamento. Ninguém tem o direito de duvidar de que esta Folha está lá na ponta. Faz sentido. Falando dia desses a formandos de uma escola militar, o presidente teve um de seus costumeiros delírios de impotência e deixou claro que não é por sua vontade que vivemos numa democracia.

Sobrava sinceridade onde falecia a decência. Faço uma citação, não um ultraje à sua biografia. Em vídeo de 1999, ele deu sua receita para mudar o Brasil --parte de seu projeto, destaque-se, está em curso com os três decretos inconstitucionais e subversivos sobre armas. Tonitruou então: "Só vai mudar [o país], infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com FHC. Não vamos deixar ele pra fora, não".

O Daniel Silveira da época não recebeu o tratamento adequado. Deu no que deu. É certo que jornalistas estariam entre as prioridades de sua obsessão exterminadora. Os profissionais da imprensa realmente independente desconsertam o mundo de Bolsonaro com a busca da verdade objetiva.

Na fala acima, ele cometia um crime, que ficou impune, sob o pretexto de exercitar a imunidade parlamentar. O jornalismo profissional dispõe da liberdade de expressão e de imprensa, duas garantias constitucionais. Confronta com os fatos as mistificações do presidente ou de seus adversários. Evidencia que o exercício do poder —também o de se opor— não pode se confundir com uma indústria de atos criminosos.



Os 30 mil fuzilados se tornaram uma pretensão modesta quando cotejados com a montanha de mortos que a negligência do governo tem fabricado nestes dias de pandemia. Somos personagens de tempos sombrios.


Cabe a todos os que têm compromisso com a ordem democrática, e muito especialmente à imprensa, a tarefa de evitar que o navio aderne na guerra de todos contra todos, promovida por uma gestão incompetente, por um governante inepto e por uma súcia de fanáticos.

Vejo a Folha enfrentar a truculência com rigor e método, em defesa das liberdades de expressão e de imprensa; dos direitos humanos, com especial atenção às políticas de reparação; do meio ambiente; da pluralidade —dos valores, enfim, que plasmam uma sociedade que há de ser moderna, aberta e justa.

E o faz sem se descuidar do zelo com a coisa pública, o que implica buscar a efetividade da Justiça no combate ao malfeito. Há um jornal vigoroso, corajoso e inquieto —mais afeito, às vezes, a novidades do que a antiguidade deste escriba pode absorver. Mas eu tenho apenas 59 anos e posso me dar ao luxo de ser meio velho. Um veículo que chega aos 100 tem a obrigação de buscar o novo —se possível, de liderá-lo.

Sou colunista desde 2013. É uma condição de risco: o que você escrever será publicado. Vire-se! Na década de 1990, fui editor-adjunto de política e coordenador da área na Sucursal de Brasília. Eram cargos de confiança. Nunca houve vetos a quês e "quens". A única orientação era fazer um jornalismo crítico, plural e apartidário —pilares da grande obra de Otavio Frias Filho.

A pluralidade implica o repúdio ao autoritarismo. Assim, o jornal que aderiu à campanha das Diretas se vestiu de amarelo no ano passado em defesa da democracia. A morte da pluralidade não é uma das vozes da pluralidade.

E tenho uma reivindicação. Que o jornal se torne ainda mais atento ao direito de defesa —e isso vale para a imprensa como um todo. O jornalismo investigativo não pode servir de correia de transmissão da indústria de vigiar e punir —criada ao arrepio da lei por facções pervertidas do Ministério Público, da PF e do Judiciário—, que chamo de "Papol": Partido da Polícia.

Sob o pretexto de caçar corruptos, essa máquina destrói a política e a Justiça. O Lírico do Fuzilamento é sua herança mais desastrosa. Deu errado, claro!, e a turma anda a sonhar com um novo demiurgo, que é só um ogro argentário com um terno mais bem cortado, mas não muito, e com uma gramática mais bem arranjada, mas não muito.

O apartidarismo tem de incluir o Papol.

Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

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