Editorial do Estadão, 10/08/20, sobre o relatório de espionagem do Ministério da Justiça e a resposta que este deu à Ministra Carmem Lúcia ao pedido de informações.

 Resposta inadmissível


Para o Ministério da Justiça, o sigilo parece ser mais importante do que a lei


Notas e Informações, O Estado de S.Paulo

10 de agosto de 2020 | 03h00



O Supremo Tribunal Federal (STF) deve deixar claro ao ministro da Justiça, André Mendonça, que a Constituição ainda vale no Brasil e, portanto, uma ordem emanada daquela Corte, não por acaso Suprema, deve ser cumprida.

Nada menos cabe no espantoso caso da recusa do ministro em dar explicações claras ao STF, conforme demandado pela ministra Cármen Lúcia, sobre a existência de um documento sigiloso produzido por um órgão do Ministério da Justiça a respeito de 579 servidores públicos federais e estaduais, entre professores universitários e policiais, identificados como integrantes de movimentos antifascistas.

O órgão em questão é a Seopi (Secretaria de Operações Integradas). Criada quando o Ministério da Justiça estava sob a chefia de Sérgio Moro, a Seopi tinha como atribuição integrar operações contra o crime organizado. Com a substituição de Moro por André Mendonça, o foco mudou, a julgar pela revelação de que produziu relatórios acerca de movimentos que se opõem ao presidente Jair Bolsonaro.


Todo governo tem seus órgãos de inteligência, e o sigilo é parte fundamental de seu trabalho. Mas esse sigilo não significa, de nenhuma maneira, carta branca para que esses órgãos trabalhem à margem da lei. Numa república democrática, nenhum Poder é absoluto – e, quando o Judiciário demanda explicações do Executivo, este deve diligentemente prestá-las, sob pena não só de infringir o ordenamento legal, como também de dar margem a que se suspeite que o sigilo na verdade se presta a esconder do escrutínio público ações arbitrárias.

É por esse motivo que a ministra Cármen Lúcia foi enfática ao dizer que, se houve mesmo a produção do tal dossiê, esse fato “escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”.

Em resposta, o ministro André Mendonça, por meio de uma nota da Seopi, informou à ministra que “não compete à Seopi produzir dossiê contra nenhum cidadão e nem mesmo instaurar procedimentos de cunho inquisitorial”, mas diz haver diferença entre “investigação criminal e inteligência de segurança pública”. Como já dito, esse trabalho é perfeitamente legítimo, desde que preservados os parâmetros legais; como o Ministério da Justiça se recusou a dizer quais parâmetros seguiu, o Supremo e o País não têm condições de avaliar se a lei foi respeitada.

Para o Ministério da Justiça, o sigilo parece ser mais importante do que a lei. Disposto a dar uma aula à ministra Cármen Lúcia, o ministro André Mendonça mandou dizer a ela que compartilhar dados secretos com o Supremo “constitui circunstância apta a tisnar a reputação internacional do País e impingir-lhe a pecha de ambiente inseguro para o trânsito de relatórios estratégicos”, além de acarretar “desdobramentos em incontáveis frentes, a exemplo da elevação do risco país no setor econômico, da perda de parceiros no combate aos ilícitos transnacionais, do incremento da dificuldade de adesão à OCDE, da ruptura de canais diplomáticos e da perda de protagonismo global”. Nada menos.

Se esses forem os efeitos causados pela revelação de documentos resguardados pelo sigilo demandado pelo ministro André Mendonça, pode-se desconfiar que a informação que o governo anda colhendo e o uso que pretende fazer dela coisa boa não é.

O que o ministro André Mendonça parece exigir, a julgar por sua atrevida resposta ao Supremo, é o direito à opacidade absoluta, característica de um Estado policial. O ministro acredita que não tenha de dar satisfação ao Judiciário, apenas, quando muito, ao Congresso – que não faz controle de constitucionalidade. Assim, além de não dar as explicações exigidas, ainda se achou confortável para recomendar ao Supremo que demonstre “parcimônia e sensibilidade”, além de exercer “autocontenção”, sob pena de, “a pretexto de apurar suposto desvio de finalidade, acabar por invadir esfera de competência do Poder Legislativo”. Que essa ousadia do ministro encontre a resposta adequada.

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