Carmen Lúcia e a fabricação de crises


O Estado de S.Paulo - 13/06/17

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, agiu de maneira incompatível com o cargo que ocupa ao tratar como mais do que mera suspeita a informação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estaria investigando o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF e responsável pelo inquérito contra o presidente Michel Temer. Por chefiar a mais alta Corte do País, dela esperava-se mais equilíbrio e prudência, num momento em que os nervos já estão suficientemente à flor da pele. Ao levar tão a sério algo que, mais do que carecer de confirmação, havia sido enfaticamente negado pelo governo, a ministra Cármen Lúcia, que deveria atuar como bombeiro, despejou gasolina no fogo.

O estopim do episódio foi uma reportagem da revista Veja, segundo a qual a Abin teria sido acionada a pedido de Michel Temer para encontrar alguma ligação entre o ministro Edson Fachin e o dono da JBS, o empresário Joesley Batista, autor da delação em que se baseou o inquérito contra o presidente, por suspeita de corrupção. Quando buscava apoio no Senado para sua confirmação como ministro do STF, em 2015, Fachin teria pedido ajuda a um executivo da JBS – empresa financiadora de muitas campanhas eleitorais – para obter os votos. O suposto pedido de Michel Temer para espionar Fachin, portanto, seria uma forma de reunir informações comprometedoras sobre o ministro do STF, que homologou a delação dos executivos e dos donos da JBS.

Não basta que uma informação faça sentido para que seja verdadeira, mas vivemos tempos esquisitos, em que meros pedaços de papel ou frases soltas se tornam “provas” de corrupção ou de más intenções. Assim, o rumor – é apenas disso que se trata, por ora – segundo o qual Michel Temer mandou espionar o ministro Edson Fachin deveria ter sido tratado com mais reserva e ceticismo por quem ocupa função institucional tão importante.

Em nota oficial a propósito da reportagem, a presidente do STF disse que “é inadmissível a prática de gravíssimo crime contra o Supremo Tribunal Federal, contra a democracia e contra as liberdades, se confirmada informação de devassa ilegal da vida de um de seus integrantes”. Mais adiante, a ministra abandonou o condicional para praticamente aceitar como fato a versão que, repita-se, ainda não foi confirmada: “O Supremo Tribunal Federal repudia, com veemência, espreita espúria, inconstitucional e imoral contra qualquer cidadão e, mais ainda, contra um de seus integrantes, mais ainda se voltada para constranger a Justiça”. Seguem-se ameaças de “consequências jurídicas, políticas e institucionais” com “a intensidade do gravame cometido, como determinado pelo direito”.

Mas há algo ainda mais grave. Tudo isso foi escrito e divulgado no sábado, mesmo depois que a ministra Cármen Lúcia ouviu do próprio presidente Michel Temer, em telefonema na noite de sexta-feira, um categórico desmentido. A jornalistas, ainda na madrugada de sábado, Temer qualificou a informação sobre a Abin de “aquela coisa bárbara” e exortou: “Vamos manter a serenidade”.

O apelo de Temer foi inútil, como se depreende da reação da ministra Cármen Lúcia, apropriada não para quem deve ajudar a zelar pelo respeito à lei, e sim para quem pretende apenas defender sua corporação. E o Supremo, aliás, jamais deveria ser tratado como corporação, sendo, como é, um poder do Estado. Felizmente, a presidente do STF mudou um pouco o tom ontem, ao dizer que o Supremo não tomará nenhuma medida no caso, pois “não há o que questionar quanto à palavra do presidente da República”. Era nisso que a ministra deveria ter pensado antes de ter publicado sua nota.


Tal crispação institucional é ainda mais perigosa quando mina a já frágil governabilidade. Parece faltar a uma parte do Judiciário a plena dimensão do que está em curso no País. Seja em razão do açodamento de alguns procuradores da República, seja por causa da imprudência de alguns ministros do STF, tem-se um quadro de instabilidade que transforma qualquer coisa em crise.

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