Ai, ai, ai, meu Brasil brasileiro...


Que “marravilha”, somos uma República très chic!

Por Lenio Luiz Streck


Voilà, madame Suplicy, ministre de la Culture de Brésil
Sem repetir clichê e sem querer estar na “moda” (ups!), Hannah Arendt já disse que quando o mal se banaliza, perdemos a capacidade de indignação. Corrompendo o ditado, pode-se dizer que, quando o desperdício fica banalizado, perdemos a capacidade de contar o dinheiro gasto...! Definitivamente, vou estocar comida. Passamos dos limites. Como ninguém tinha pensado nisso antes? Como ninguém tinha pensando em usar incentivos fiscais — portanto, o dinheiro da choldra, da rafanalha, da ratatulha — para fazer desfiles de moda... em Paris? Très chic! Voilà, madame Suplicy, ministre de la Culture de Brésil.

Já escrevi, aqui, sobre o livro de Alan Riding, Paris, a Festa Continuou, que trata da vida cultural de Paris durante a ocupação nazista. Há uma bela passagem, que fala de uma canção popular do ano de 1936, interpretada por Ray Ventura, chamada Tout va très bien, Madame La Marquise (“Tudo vai bem, Madame La Marquise”). A canção denunciava o que a França fingia não ver: o cataclisma que se aproximava. Na canção, os empregados de uma aristocrata continuavam a assegurar-lhe de que tudo estava bem, embora um incêndio tomara conta de seu castelo, destruindo os estábulos e matando a sua égua favorita. Além disso, o marido de Madame cometera suicídio, mas, ainda assim, não havia com que se preocupar, porque Tout va très bien, Madame La Marquise. Faço, então, uma paródia com o título da música de Ray Ventura: tudo-vai-muito-bem-no-mundo-do-ministério-da-cultura-de-terrae-brasilis. Como o famoso corsário, “afundando e atirando, afundando e atirando”! Também há o filme italiano Stanno tutti bene (1990), com Marcelo Mastroianni (os filhos estavam todos “bem”: por exemplo, o que era maestro, na verdade apenas tocava um tambor!).

Tudo isso parece perfeito para explicar o episódio da autorização da ministra da Cultura, Marta Suplicy, passando por cima de seu órgão técnico que a negara, para que dois ricos estilistas brasileiros usem incentivos fiscais (mais de R$ 7 milhões) para fazerem desfiles de moda na França. Não há palavras para isso. E não há comparativos. Enquanto a malta (não a Marta) toma soro em pé, se esfalfela em apertados ônibus etc., etc., damo-nos ao luxo de gastar dinheiro público para essas excentricidades para ricos e frequentadores de colunas sociais.

A ministra defende sua atitude dizendo que isso faz parte do soft power, mas certamente esqueceu de ler o que Joseph Nye, que cunhou a expressão, diz o que significa. Está mais para waste of money. Não adianta a malta ir às ruas reclamar. Certas autoridades não se dão conta. Como escrevi nacoluna passada, parece que só a palmeira jussara evolui. Nossa nobre ministra parece que está vivendo em outro mundo. Filha de família rica (a nobreza de Pindorama), pensa que pode, numa terra de milhões de descamisados, distribuir dinheiro público para, digamos assim, supérfluos exibicionismos prêt-à-porter. Isso é estroinar com a malta.

E o Direito, o que tem a ver?
Sim, esta é uma boa pergunta: o que se pode fazer? Tem ela, a ministra, poder discricionário para gastar o ervanário da combalida viúva? Ou ela pode ser impedida de fazer esse gesto de mecenato fora de lugar? A bola está com o Ministério Público. O que fará a instituição encarregada de zelar pelo patrimônio da viúva e da malta? Agirá?

Se ninguém fizer nada, então sugiro que façamos uma fila e peçamos todos passagens para assistir ao desfile dos dois estilistas em Paris. Torre Eiffel, aqui vamos nós! A malta na Cidade Luz. Tomemos Paris de assalto! Locupletemo-nos todos. Entupamos o ministério com nossos pedidos. Quero ver os burocratas despachando papéis e formulários.

Se o Direito não servir para parar com uma farra desse naipe, então que paremos de falar em princípios constitucionais. Fechemos as faculdades. Não mais façamos teses e dissertações sobre moralidade, eficiência, controle de gastos públicos, discricionariedade, legalidade, isonomia e, fundamentalmente, republicanismo. Se o Direito não servir para impedir esse tipo de farra com o ervanário público, vou fazer um projeto para um desfile de princípios constitucionais. Vou abrir uma grife, algo como Kalvin Streck Principles Clothes (K&SPC), Levi’Streck, Streck & Zegna Hermeneutics Dresses ou Streckvitton Books & Simplicity Law Literature (para fazer desfiles para concursos públicos — sim, porque minha grife levará a moda jurídica para todos os setores). Tudo sob o patrocínio de incentivos fiscais. A teoria do direito ficando chique...! Très chic!

Falando sério: levemos o Direito a sério. E a República. E nada mais tenho a dizer. Esta é a coluna mais curta que já escrevi. Mas penso que não preciso dizer mais do que isso. Quando esta coluna for publicada, provavelmente a autorização para a captação dos milhões destinados aos desfiles na Cidade Luz já tenha sido revogada, em face dos protestos da mídia. Não importa. O episódio é relevante por seu papel simbólico. Não é o fato em si, que, creio, é facilmente sustável. Preocupa-me o imaginário de certa gente. E falta total de sensibilidade. O gesto da ministra faz lembrar ditaduras africanas ou coisas de potentados do petróleo... Só não faz lembrar... o Brasil.




Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-ago-29/senso-incomum-marravilha-somos-republica-tres-chic

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